A imaginação em Gambito da Rainha
só para quem assistiu a série inteira, aviso dado, vamos ao que importa…
Por n motivos, achei esta minissérie do Netflix fantástica. Mas um deles bem desenvolvido pela narrativa, que é meu tema de paixão, foi a imaginação do jogo que a personagem principal realiza e as cenas tão bem representam. Um elemento que leva desde a infância à vida adulta a ser uma jogadora genial do Xadrez. Então, eu pretendo dar spoilers da série, este texto é para quem viu, e quem não viu também mas se interessa sobre a imaginação como desenvolvimento humano.
Beth Harmon é uma personagem fictícia dentro de contexto parecido com o nosso, mas entre os anos 50 e 60. A série narra a história de Elizabeth, uma garota que perde a mãe num acidente e vai para um orfanato. Lá, ela aprende a jogar xadrez com o zelador, um sujeito frio e claramente adicto ao jogo, participante de clubes de xadrez do entorno. Beth é muito jovem e de temperamento feroz, se dedica com afinco ao jogo e começa a superar o seu mestre.
Ela não tem acesso a um tabuleiro, pois as meninas do orfanato se dedicam a outras atividades, voltadas para suas ações do futuro. Como bordado e economia doméstica, prática escolar comum na década de 50. Para treinar, Beth faz projeções mentais de possibilidades de jogadas no teto do seu quarto, na cama, antes de dormir. É um tipo de devaneio ativo, em que na ausência de condições — um tabuleiro e outros jogadores para praticar — Beth joga contra sua própria mente.
Claro que isso não vem com outros problemas, para criar as condições necessárias de elaboração mental e projeção ativa — como uma mente despreocupada, só para eleger um elemento — Beth toma ansiolíticos. Depois de algum tempo, ela acaba se viciando nessa sensação de controle, pois a mente dela fica extremamente focada no jogo, nas possibilidades e no espaço de conforto que a imaginação pode conceder.
O mundo está em relação constante, então, a transitoriedade da vida coloca Beth em frente aos novos desafios no mundo do xadrez, ela começa a competir e se mostrar o prodígio que ela viria a ser mais tarde. Porém, a adição a leva a cometer infrações no orfanato e à proibição do xadrez, só sobrando o momento em que ela lê e estuda as jogadas nos livros clássicos, ou ainda, na sua própria mente, por meio da projeção mental.
Percebo que para deixar-se levar ao devaneio, Beth precisava de algumas condições específicas, que sua vida não permitia. Como o estudo que dá repertório para as elaborações mentais; ou mesmo um tipo específico de relaxamento físico e mental, que dão vazão para uma imaginação tão fortemente projetiva e visual; ou ainda um pouco solidão. Coisas que podem ser maravilhosas para o intelecto a curto prazo, mas a longo prazo exigem que distanciamento social e pouca interação que não seja pelo agon. No caso dela, a competição contra si mesma.
Agon em grego está relacionado ao conflito, ao combate e a disputa. O melhor vence, o mais preparado, o mais treinado. Harmon se exclui da vida para se dedicar ao único lugar em que ela está totalmente sob controle, o tabuleiro. A vida dela é marcada por grandes perdas e incertezas, exclusão e isolamento. Ela compete no jogo, sempre o prazer da vitória, mas na vida, ela compete consigo mesma. O que pode ser completamente perigoso se não utilizado com parcimônia (todos nós precisamos disso às vezes, um confronto consigo, autocrítica é um exemplo disso).
A imaginação se torna palco para essa disputa que foi facilitada pelo uso de entorpecentes, pelo abandono do cuidado, que talvez, ela mesma não conhecesse. Em troca, com muita perspicácia e selvageria devorava adversários, tornando-se um verdadeiro gênio do xadrez. Só mais tarde ela conhece outras formas da competição, percebe que está indo de mal a pior com o vício e abre espaço para cooperação entre pares e amizade para se transformar numa vencedora mundial.
Depois de cuidar dos seus hábitos, ao competir na Rússia, Harmon utiliza a imaginação para derrotar o atual vencedor, pensando as possibilidades de jogadas possíveis, se conectando com o seu intelecto de maneira segura, mesmo sobre a pressão das competições e dos olhos de todo o país voltados para a dupla.
É muito clichê dizer que a imaginação está por trás de toda criação humana, abrindo caminhos para o pensamento, no caso de Harmon — essa personagem fictícia, que resolvemos amar — como simulação das possibilidades de jogadas. A imaginação estava lá, desde o início, ajudando no seu desenvolvimento como boa jogadora de xadrez e garantindo seu brilhantismo no final, mas o que importava mesmo, era a diversão, era o desafio intelectual e poder se profissionalizar no que você gosta. Ao mesmo tempo que é o lugar de escapismo da realidade — aquele Yellowstone mental, do qual Freud falava — é também um lugar para se tornar mais do que se é.