A imaginação em Gambito da Rainha

Vivi Ferreira
4 min readFeb 25, 2021

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só para quem assistiu a série inteira, aviso dado, vamos ao que importa…

Por n motivos, achei esta minissérie do Netflix fantástica. Mas um deles bem desenvolvido pela narrativa, que é meu tema de paixão, foi a imaginação do jogo que a personagem principal realiza e as cenas tão bem representam. Um elemento que leva desde a infância à vida adulta a ser uma jogadora genial do Xadrez. Então, eu pretendo dar spoilers da série, este texto é para quem viu, e quem não viu também mas se interessa sobre a imaginação como desenvolvimento humano.

Beth Harmon é uma personagem fictícia dentro de contexto parecido com o nosso, mas entre os anos 50 e 60. A série narra a história de Elizabeth, uma garota que perde a mãe num acidente e vai para um orfanato. Lá, ela aprende a jogar xadrez com o zelador, um sujeito frio e claramente adicto ao jogo, participante de clubes de xadrez do entorno. Beth é muito jovem e de temperamento feroz, se dedica com afinco ao jogo e começa a superar o seu mestre.

Ela não tem acesso a um tabuleiro, pois as meninas do orfanato se dedicam a outras atividades, voltadas para suas ações do futuro. Como bordado e economia doméstica, prática escolar comum na década de 50. Para treinar, Beth faz projeções mentais de possibilidades de jogadas no teto do seu quarto, na cama, antes de dormir. É um tipo de devaneio ativo, em que na ausência de condições — um tabuleiro e outros jogadores para praticar — Beth joga contra sua própria mente.

Para mim, já é difícil sem estar de ponta cabeça…

Claro que isso não vem com outros problemas, para criar as condições necessárias de elaboração mental e projeção ativa — como uma mente despreocupada, só para eleger um elemento — Beth toma ansiolíticos. Depois de algum tempo, ela acaba se viciando nessa sensação de controle, pois a mente dela fica extremamente focada no jogo, nas possibilidades e no espaço de conforto que a imaginação pode conceder.

O mundo está em relação constante, então, a transitoriedade da vida coloca Beth em frente aos novos desafios no mundo do xadrez, ela começa a competir e se mostrar o prodígio que ela viria a ser mais tarde. Porém, a adição a leva a cometer infrações no orfanato e à proibição do xadrez, só sobrando o momento em que ela lê e estuda as jogadas nos livros clássicos, ou ainda, na sua própria mente, por meio da projeção mental.

Percebo que para deixar-se levar ao devaneio, Beth precisava de algumas condições específicas, que sua vida não permitia. Como o estudo que dá repertório para as elaborações mentais; ou mesmo um tipo específico de relaxamento físico e mental, que dão vazão para uma imaginação tão fortemente projetiva e visual; ou ainda um pouco solidão. Coisas que podem ser maravilhosas para o intelecto a curto prazo, mas a longo prazo exigem que distanciamento social e pouca interação que não seja pelo agon. No caso dela, a competição contra si mesma.

Agon em grego está relacionado ao conflito, ao combate e a disputa. O melhor vence, o mais preparado, o mais treinado. Harmon se exclui da vida para se dedicar ao único lugar em que ela está totalmente sob controle, o tabuleiro. A vida dela é marcada por grandes perdas e incertezas, exclusão e isolamento. Ela compete no jogo, sempre o prazer da vitória, mas na vida, ela compete consigo mesma. O que pode ser completamente perigoso se não utilizado com parcimônia (todos nós precisamos disso às vezes, um confronto consigo, autocrítica é um exemplo disso).

A imaginação se torna palco para essa disputa que foi facilitada pelo uso de entorpecentes, pelo abandono do cuidado, que talvez, ela mesma não conhecesse. Em troca, com muita perspicácia e selvageria devorava adversários, tornando-se um verdadeiro gênio do xadrez. Só mais tarde ela conhece outras formas da competição, percebe que está indo de mal a pior com o vício e abre espaço para cooperação entre pares e amizade para se transformar numa vencedora mundial.

Descansar? Que nada! Vou treinar para ganhar todas competições possíveis. Ha ha haaa!

Depois de cuidar dos seus hábitos, ao competir na Rússia, Harmon utiliza a imaginação para derrotar o atual vencedor, pensando as possibilidades de jogadas possíveis, se conectando com o seu intelecto de maneira segura, mesmo sobre a pressão das competições e dos olhos de todo o país voltados para a dupla.

É muito clichê dizer que a imaginação está por trás de toda criação humana, abrindo caminhos para o pensamento, no caso de Harmon — essa personagem fictícia, que resolvemos amar — como simulação das possibilidades de jogadas. A imaginação estava lá, desde o início, ajudando no seu desenvolvimento como boa jogadora de xadrez e garantindo seu brilhantismo no final, mas o que importava mesmo, era a diversão, era o desafio intelectual e poder se profissionalizar no que você gosta. Ao mesmo tempo que é o lugar de escapismo da realidade — aquele Yellowstone mental, do qual Freud falava — é também um lugar para se tornar mais do que se é.

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Vivi Ferreira

Aspirante a escritora. Amante da ficção. Profissional da Educação. Doutora.