Amarelo

Vivi Ferreira
4 min readAug 27, 2019

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Campanha de prevenção ao suicídio.

Hoje vou escrever sobre traumas. Mas não somente isso, mas como na nossa eterna configuração de uma auto imagem, da nossa narrativa interna, essas imagens — mais fortes e potentes que outras — ficam firmes dentro de nós. Recentemente, eu passei por um grande trauma na minha vida, perdi de maneira abrupta minha irmã, numa maca da UTI, no SUS. No momento, estou me reorganizando ainda, mas estou aqui, viva.

Já tive outros traumas, mais profundos e pesados. Como eu já falei, carreguei alguns encontros com homens de barbas azuis, extremamente interessantes e excêntricos, cruéis e mesquinhos. Levaram tudo e não deixaram nada. Em alguns momentos, minha psiquê se despedaçou, não sobrou mais nada. Nestes dias, senti frio e medo, era como se meu corpo já estivesse morto e minha alma, mais ainda.

Deste lugar, onde esta imagem é forte como uma luz da lua, refletindo sobre tudo na noite escura, não havia ruas de mão dupla, somente becos sem saída. Quando entrei neste labirinto, sinto dizer, não foi só uma vez, foram algumas; não percebi saída. Só o fim parecia um caminho possível para acalmar as dores que estas projeções da minha história no meu ser repercutiam. E não adianta fugir, em segundos, existe uma fuga, mas depois, não existe saída, nem mais nada. Tudo volta que nem tromba d’água no mar aberto.

Essas imagens tão presentes causaram muitos pesadelos. Então, a primeira coisa que eu perdi para a morte, foi o sono. Este momento era seguido de terrores noturnos, noites em claro, paranoias constantes. Era como se eu fosse uma fruta amarela, que não poderia amadurecer, pois não teria as condições necessárias. Se para o todo mundo as coisas já são difíceis, para mim, parecia ser o dobro de complicado.

Quando eu vi, aquele vídeo novo do Emicida, AmarElo, feat. Pabllo Vittar e Majur, doeu no meu coração, todas aquelas cenas de pensar em se matar. Sim, quando você entra nesse looping, o problema é lidar com a solução rápida e insistente na cabeça. Acaba logo com essa porra toda! Quando você acha que está bem e que nunca mais vai passar por isso, vem mais uma dor, mais um sofrimento, e pau na cabeça. Você está naquela encruzilhada de novo.

Somente quem viu a morte de perto, sabe o que é sentir isso. Não saber se livrar daquela projeção da dor. Algo ruim te invade o peito e depois que passa, você já não sente mais nada. Fica um vazio total, onde nada tem graça ou muda. Uma das vezes que mais sofri, uma grande amiga me falou algo que reascendeu a chama no meu coração.

Sei que você está triste e sofrendo, mas isso me dá alguma esperança, porque ainda existem pessoas capazes de sentir, isso quer dizer que nem tudo está perdido.

Quando fui voltando para casa, pensando nesta frase, eu fui mudando aquela projeção de maneira sutil. Senti um calor no meu peito, que já não sentia há algum tempo. A minha auto imagem foi se reconfigurando. Eu era humana, e por isso sofria. Parece tolo pensar nisso agora, já que estou me reencaminhando para me sentir plenamente bem. Mas naquele momento, naquele dia, eu consegui me reestruturar e mudar aquela imagem de mim, aquela de vítima, de sofredora.

Hoje, nada do que eu faça vai me trazer conforto sobre a perda da minha irmã. Ela se foi, nada vai trazê-la de volta. Eu sinto um corte profundo no coração. Ela era minha professora de ser feliz, ela me ensinava a ficar firme todos dias, mesmo quando eu não conseguia mais. A imagem dela sem calor, ainda povoa os meus pensamentos. Agora, eu tenho que inventar uma nova imagem de mim, uma que eu não tinha antes, já que ela me ajudava a permanecer firme e como ela mesma dizia, alimentar meu feminino para ser melhor e mais saudável.

No momento, me reencontro comigo mesma e todas coisas que já inventei para mim, que ela foi minha luz e que ela me ajudou quando eu me via de um jeito ruim. Reassisti o filme Elena, no auge da minha dor, para entender como eu podia fazer meu sentimento fluir como água, estar ali, mas não o tempo todo, me permitir voltar a ser feliz, mesmo que sem ela. Não deixar que esta cicatriz me definisse, como no verso cantado por Vittar em AmarElo.

Chorei, chorei e chorei. Quando parecia que não tinha mais lágrimas chorei de novo. Eu senti que estava me esvaindo em dor e após os longos banhos de água quente e corrente, eu também derretia, descia pelo ralo e me diluia no mar. Isso ainda acontece, mas agora de um jeito diferente. Eu sinto saudades. E me redesenho, desta vez, sem ela ao meu lado. Gritando dentro de mim que “Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Eu dou um passo a frente.

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Vivi Ferreira

Aspirante a escritora. Amante da ficção. Profissional da Educação. Doutora.