Crônicas do apocalipse

Vivi Ferreira
4 min readOct 1, 2020

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Terminei de assistir hoje Battlestar Galactica, uma série do início dos anos dois mil, do gênero ficção científica militar e… sobre o fim da humanidade.

Recomendação da Flávia Gasi, do portal Garotas Geeks, bom demais s2

O fim dos humanos, a queda da civilização e outros temas apocalípticos tem sido uma tendência na ficção científica de modo geral. Futurólogos trazem previsões pessimistas e os criadores pegam no embalo da crise da humanidade para dizer que se continuarmos assim, vamos decair ainda mais. Isso tudo, adicionado a robôs versus humanos, pronto! Temos uma receita de sucesso para o entretenimento. O que me incomoda é essa visão de que tudo vai acabar, e por isso, quero aprofundar melhor esse tema.

Entendo grande parte da crítica cultural meter o pau neste tipo de gênero, já que a tentação de fazer uma moralização como quem passa uma mensagem do tipo: devemos ser “educados”. Como crianças pequenas, de uma forma que está ultrapassada até para a ciência educacional de hoje, o meio parece “apontar o dedo para o nariz, dizendo: que feio, não faça isso!”. O que geralmente é uma boa tentação (e intenção) que todos nós caímos como pessoas, mas que realmente não surte efeito algum na humanidade.

Confesso que o gênero “pós-apocalíptico” e ficção científica espacial me atrai muito, adoro as criações visuais, os saltos no hiperespaço, a forma como entra em contato com mitologias e outras formas de saberes humanos de uma maneira investigativa, quase arqueológica, que dá a história o verdadeiro sabor: o que fizemos antes nos leva a onde estamos agora. Algo que a ficção deste gênero vem fazendo muito bem até o momento, inclusive colocando a mitologia num lugar interessante de contemplação do homem e da sua realidade e do molde da sua esperança.

Vamos a alguns exemplos em Battlestar. Laura Roslin — a presidente interina da humanidade em Battlestar — não poderia guiar os homens à terra sem a mitologia que integra as tripulações. Em um dado momento, não dá para saber o que veio primeiro, o desejo de buscar esperança em um novo lugar, ou, o que está escrito no livro de Pythia, profeta da filosofia de Kobol (da qual a união de planetas abriga). Este é realmente uma boa interpretação da mitologia, não importa qual seja o cânone, ele dirige as ações humanas e é assim que deve ser pensado.

Voltando ao apocalipse, seguimos a mesma premissa, no livro bíblico, escrito pelo profeta João, que viu a terra totalmente tomada pela vida humana, sonhou com um bocado de desgraças que iriam mais além. Hoje podemos ver algumas delas, como a fome, a falta de esperança, a miséria de outras ordens, causadas por avanços de todos os tipos, em formas de opressão que eu em poucas linhas não poderia denominar. O “crescei e multiplicai” deu ruim, vamos rebobinar. A mitologia cristã já previa.

Neste outro contexto, o da ficção científica, o ser humano encontrou algum tipo de equilíbrio científico e tecnológico que proporcionou uma boa estabilidade para a espécie. Além de uma mentalidade de que a vida pode ser fácil com uso e abuso de tecnologia — digo isso não só das máquinas que nos servem para que possamos escrever este texto, mas também pela terra e outras espécies, além da nossa mesmo, que é explorada para que possamos viver de maneira confortável. Todos que olham em retrospecto, como a maior parte destes autores de ficção tentam fazer, vêm o escuro total no fim do túnel.

Só consigo pensar que o jeito que como estão construídas estas histórias, caem no risco de não atingir a reflexão mais importante que deve ser feita atualmente: “que tipo de relação estabelecemos com aquilo que nos envolve?”, seja a terra onde nos estabelecemos, a cidade, ou mesmo os vizinhos. Se subirmos a escala, com os outros animais, com a natureza e com os outros “outros” que não são nós mesmos. Será que sempre temos que cair no vórtice temporal de dominação, seguida de medo da destruição que isso gera? Vamos continuar falando de Cylons que não aceitaram ser escravos dos homens e tiveram que extinguir a raça humana que é podre e cruel, por isso não merece viver. Ou ainda, como em Matrix, em que as tec foram escravizaram e resolveram pagar, “olho por olho, dente por dente”, entubados, os homens doam suas energias vitais para as máquinas permanecerem ligadas (isso dá abertura para refletir sobre a tecnocracia, além da tecnologia na sociedade atual). Estes exemplos são novas visões daquele mesmo “Prometeu moderno” de Mary Shelley, o homem se atreveu a ser criador de uma nova espécie, fez isso somente para provar para si mesmo que era super poderoso ou tinha o conhecimento, e isso acabou voltando para si mesmo como um tsunami.

Ok, estou trocando uma reflexão moralista por outra ainda mais. Eu sei, eu sei. O que acontece de fato é que o apocalipse não significa necessariamente um fim, mas uma nova oportunidade de recomeço. E para recomeçar, não podemos nos esquecer do que veio antes, para não acabarmos caindo no mesmo buraco negro de olhar para o mundo como nossos brinquedos, que não podemos cuidar ou ter relações positivas, de troca e de esperança, e não de dominação seguida de medo. Talvez, este universo pós apocalíptico que espero que cruze as barreiras binárias entre utopia e distopia, ainda esteja por vir. Em outras palavras, o fim pode ser visto como uma busca por um novo começo, e isso por si só, já dá bastante conflito.

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Vivi Ferreira

Aspirante a escritora. Amante da ficção. Profissional da Educação. Doutora.