Grandes mentirinhas e as mulheres selvagens

Vivi Ferreira
6 min readJun 18, 2019

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Sobre Celeste, Jane e o Barba Azul da análise de Clarissa Pinkola, contém spoilers…

Este comentário é para quem já assistiu a primeira temporada. E também é um pouco sobre como ficamos indignadas ao ver personagens super guerreiras e mulheres fortes passando por diversos tipos de violências cotidianas. Celeste foi assim para mim, vê-la atuando como advogada, vestida para efetivar a peça da amiga que estava sendo vetada pelo prefeito, se sentindo viva e em seu habitat natural. Uma mulher selvagem que já conhece seu poder.

Suas amigas não sabem o que ela sofre em casa.

Ela nunca conta para ninguém, em nenhum momento olha para sua própria vida e questiona, porque esse marido? Ele é lindo, bem sucedido, deu a ela gêmeos perfeitos. Essa é a história do Barba Azul, analisada por Clarissa Pinkola Éstes no seu livro “Mulheres que correm com lobos”. Um homem perfeito, que lhe conduz a uma vida reluzente como cristal, a casa deles é um aquário para uma bela vista da praia de Monterey, ele é alto, bonito, forte, tem pegada na cama. Perry e Celeste são totalmente apaixonados um pelo outro.

A série vai levando todas nós a acreditar que aquele casamento é perfeito. O casal, um mais belo que o outro, os filhos saudáveis, padrão americano de beleza, cabelos claros e olhos verdes. Mas quando nós vamos entrando cada vez mais na intimidade da vida das mães perfeitas da escola pública Oterbay, vamos vendo segredos entulhados. Como na fábula do Barba Azul, as irmãs precisam abrir muitas portas para achar àquela que encaixa na pequenina chave, com leves arabescos acima.

História Clássica que nos alerta sobre o perigo da violência doméstica.

Quanto mais íntimas as três amigas se tornam, mais vamos conhecendo a realidade no casamento de Celeste. A violência sexual escondida por trás do desejo de posse, por trás do “eu também revido” ou “depois nos envolvemos numa transa enlouquecida”. Muitas portas, muito esconderijos. Perry parece o homem perfeito, pai dedicado, marido apaixonado. Mas o seu lado monstruoso vai crescendo a medida em que Celeste vai se liberando, assumindo o caso na prefeitura, querendo voltar a trabalhar como advogada, colocando rédeas nos seu corpo, deixando claro que quer fazer terapia ou vai se separar definitivamente, ou até a cartada final, a casa para fuga no caso das coisas ficarem mais violentas — fato descoberto por ele na noite do sangue. Sua mulher selvagem vai dando as caras lentamente, como dizem os fofoqueiros: “Ela andava agitada ultimamente”.

A história do Barba Azul é previsível, as irmãs sabem que o homem não é gentil e temem por sua irmã. Ele viaja e proíbe a abertura daquela porta, que esconde os ossos e o sangue de suas vítimas. São as irmãs mais velhas que auxiliam a irmã mais nova a abrir a porta secreta, a trazer a consciência o grande segredinho do monstro. Algo que depois de escancarado, não poderia ser mais fechado ou escondido. A mesma coisa acontece com Celeste, que conta com a terapeuta para alertá-la que as coisas vão ficar cada vez piores, e que ela deve armar um plano de saída. As amigas ajudam a desvendar outros segredos: o filho dela ser um bully na escola: inspirado pelas torturas do pai ecoadas pela casa; ou que Perry estuprou sua amiga Jane e é pai biológico de Ziggy, que tem a mesma idade de seus filhos.

Nem um fiapo de barba, 100% Barba Azul.

Celeste até o último minuto precisa invocar a libertação pelas amigas, como pelas irmãs mais velhas na Fábula do Barba Azul. Suas ações intricadas entre serem mães de meninas e meninos da mesma classe, mas também por conhecerem a força violenta do homem que subjuga as mulheres. Grandes mentirinhas segura sua trama em torno destas pequenas violências que nos tornam mulheres plenas, pois acabamos reivindicando nossa liberdade, custe o que custar. Este é o poder da mulher selvagem que vamos buscando aos poucos em nossa existência.

Não tem como esconder mais as marcas dos espancamentos com maquiagens, no momento da escadaria, Perry mostra para todas o seu lado Barba Azul, todas elas têm de agir para proteger umas as outras. O verdadeiro sentido de sororidade emerge daquela cena. A força de quem sabe o que é a vida e quanto ela vale, a força das mulheres selvagens, da força instintiva feminina. Um homem brutal, tudo indica que ele é incorrigível, descoberto pelo olhar de uma para outra, Madeleine, Jane e Celeste identificam o Barba Azul, o inimigo da psique da mulher.

Cena final. Todas percebem que Perry realmente é.

Celeste vive enganando a si mesma, com o interesse em manter o casamento externamente perfeito e o relacionamento abusivo, sonhando que o marido vai mudar. Ela busca um ideal de realização visual e um tanto egoico.

“Todos os seres humanos querem atingir um paraíso prematuro aqui na terra. O problema é que o ego deseja sentir-se fantástico, enquanto um anseio pelo paradisíaco, quando aliado à ingenuidade, não nos deixa realizadas, mas nos transforma, sim, em alvo para o predador.” Clarissa Pinkola Éstes

Jane, a mãe solteira, já perdeu a ingenuidade, ela dorme com uma arma carregada embaixo do travesseiro, tem pesadelos frequentes de que a sua casa está sendo arrombada. Ela é perseguida pela ideia de vingança com sua libertação da história trágica que viveu. O sonho a chama para liberação que ela ainda nem sabe qual é. Todas violências desde o bullying na escola, ao estupro que Jane sofre e a violência doméstica sofrida por Celeste estão intrincadas, tudo se manifesta como um sinal dos tempos ruins em que vivemos.

“Portanto, quando as mulheres sonham com o predador natural, nem sempre se trata exclusivamente de uma mensagem sobre a vida interior. Às vezes é uma mensagem sobre os aspectos ameaçadores da cultura em que vivemos.” Clarissa Pinkola Éstes

Big Little Lies é uma série sobre mulheres para todos. Quando precisamos perceber e não fechar os olhos, precisamos contar os segredos e precisamos saber usar as grandes mentirinhas para se proteger quando for necessário. Nem todos são a favor do (re)nascimento da mulher precavida, da mulher atenta e da mulher selvagem, aquela que sabe ler seu presente e passado, e assim, armar uma saída para um futuro melhor.

Por isso, trazer temas como a relação entre as violências é importante, vamos nos libertando gradativamente, unidas as outras por meio do diálogo transformativo. Celeste se impulsiona na certeza de que os filhos têm sofrido uma influência ruim do pai agressor e que ela não deseja que eles permaneçam neste ciclo de violências geracional.

É por esse motivo que a natureza selvagem das mulheres precisa ser preservada — e até mesmo, em alguns casos, protegida com extrema vigilância para que não seja de repente sequestrada e estrangulada. É importante alimentar essa natureza instintiva, abrigá-la, dar-lhe condições de expansão, pois mesmo nas condições mais restritivas da cultura, da família e da psique, a paralisia é muito menor nas mulheres que mantiveram seu vínculo com a natureza instintiva profunda e selvagem. Embora haja danos se uma mulher for presa e/ou induzida a se manter ingênua e submissa ainda sobra energia suficiente para superar o carcereiro, escapar dele, correr mais do que ele e, finalmente, dividi-lo e desmanchá-lo para seus próprios usos construtivos.

Este é poder do simbólico, trazido pelo programa de TV. Não precisamos recorrer ao desmantelamento da vida ou ao crime. Mas primeiro ao renascer com uma mulher consciente, que se teme, pode pedir ajuda das amigas para tomar consciência do seu algoz, tratar um plano de fuga ou mesmo destruir o opressor por vias legais/judiciais. Somos mulheres selvagens em algum lugar dentro de nós, e talvez, esse seja o nosso grande segredinho.

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Vivi Ferreira

Aspirante a escritora. Amante da ficção. Profissional da Educação. Doutora.