O paradoxo de Midsommar

Vivi Ferreira
4 min readApr 23, 2021

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ou porque nossa sociedade é tão ferrada

Este filme é um thriller que se passa a plena luz do dia. Na tradução em português brasileiro, deram o nome de “Midsommar — O Mal Não Espera a Noite” — ok, isso não é parâmetro nenhum, tradução de nomes de filme é uma arte oculta. Apesar dos clichês e clássicos do gênero, este filme me fez pensar uma coisa, então, se quiser seguir lendo sem ter visto o filme, é por sua conta e risco. Narra a história de Dani (sim, ela é uma garota na flor da vida) que perde a irmã e os pais tragicamente. Seu namorado está indo para Suécia a convite de um intercambista, com um grupo de amigos universitários (mais um lugar comum). Em pleno verão, eles vão para conhecer o sol da meia noite, como fica muito ao norte, os dias de verão são longos e as noites bem curtas.

Ela está precisando esparecer da sua realidade, então, meio que se auto convida. E como ela está na pior, ninguém fala não. A verdade é que ela está passando por um momento de Estresse Pós Traumático, com crises de ansiedade intensas e pânico total. Apesar disso, os garotos a sua volta só querem se divertir, fazer contatos, conhecer garotas e desvendar os mistérios da curiosa vila de seu amigo do intercâmbio. Parece legal, né? Só que para Dani não é. Ela está claramente machucada e fica o tempo todo fingindo que está tudo bem para poder não estragar o rolê dos amigos ou perder seu namorado, já que ela sabe que a relação está balançada. Muita coisa para a pobre Dani lidar, ela só quer dar um tempo dos seus problemas.

Está aí a chave da história. A melhor forma de lidar com a ansiedade ou o estresse é lidar com sentimentos confusos e dolorosos, dar espaço para que eles sejam sentidos, ao invés de simplesmente virar as costas e fingir que eles não estão ali. Isso pode ser a receita do sucesso ou as coisas podem ficar piores. No caso de Dani, a tentativa de agradar e não perder a única família que sobrou, o namorado, um sujeito egocêntrico e distante que já começa a receber cortejos de uma das garotas da vila. A vila é um lugar idílico com práticas ancestrais que podem ser vistas como cruéis, mas um forte sentimento de comunidade. Dani é bem recebida ali, com todos rituais estranhos, drogas alucinógenas, flores do campo e roupas típicas. Ela vê a morte de perto. Ao chegarem a Hårga, dois idosos cometem senicídio em um penhasco, e depois, um a um dos seus amigos vão desaparecendo.

“As comemorações do Solstício do seu povo envolvem sacrifício humano?”

O filme é lindo, as cenas são primorosamente montadas, as cores de verão, closes nos rostos dos atores, roteiro impecável, ainda com o brinde de uma vasta pintura popular que antecipa cena a cena, contando para o espectador o significado por trás de cada prática ritualística. No Midssomar, que é o solstício, o dia mais longo, é celebrado de maneira ancestral, ou seja, com rituais de sacrifício. Dani é a única que escapa, pois ela ganhou a competição para Rainha de Maio.

Dani se dá conta das mortes, da traição de seu namorado, de sua dor e começa a gritar com muita força em meio uma crise de pânico e de dor. Desta vez, as mulheres da vila, sentiram cada momento do seu sofrimento, pois elas também perdiam seus pais, mães, amantes, uma vez por ano, ofertando as nove almas ao Sol, como promessa para a boa colheita. Apesar dos brutais ritos e da inconcebível inevitabilidade, tudo ali já tinha sido orquestrado, não existia mais escapatória, Dani finalmente encontra o que ela necessita, companhia na dor, compreensão, acolhimento, quando grita, todas mulheres entoam choros juntas, elas sabem exatamente o que Dani está sentindo. Finalmente, ela consegue ultrapassar a dor e respirar novamente, encontra uma nova família para substituir àquela perdida.

Finalmente, alguém que me entende…

Os hábitos de fazer sacrifícios humanos se perderam, e este tipo de ficção traz costumes de povos antigos, mistura de nórdicos, escandinavos e vikings. É sabido que houve em todo mundo sacrifício de sangue nestas datas e que hoje nossa mentalidade ocidental acha uma atrocidade desnecessária. Porém, nessa história, estar ao lado de Dani como espectador, faz com que a gente entenda porque o sacríficio e não só isso. Compreendemos o valor da comunidade e como estes ritos aproximam as pessoas. Daí, vemos que estar sozinho diante da dor e viver ignorando o sofrimento pode ser tão monstruoso quanto morrer para regar com seu sangue os campos. Pelo menos, vemos a colheita de corpos renascer para dar de comer ao futuro.

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Vivi Ferreira

Aspirante a escritora. Amante da ficção. Profissional da Educação. Doutora.